Reflexão

"Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo..."

(Mário Quintana)

segunda-feira, 27 de agosto de 2007


OS POSSUIDORES DE MUNDOS

Nesse mundo estranho, muita gente tem lá suas particularidades. Mas acontece que algumas poucas pessoas superam de longe a esquisitice do mundo ao nascerem paralelamente a qualquer outra existência. Essas raras pessoas nascem como se a natureza, entediada, desenhasse uma ironia viva que anda e fala. É o possuidor-de-mundos. Estas pessoas, por uma contingência uterina inexplicável, nascem com uma sensibilidade desgraçada que mostra sua presença em cada instante dos seus estranhos dias e de suas meditativas noites. São nestes que a gente de outra estirpe põe apelidos, acham estranhos, esquisitos... São os “the freak” do mundo. Quando criança, ele é daquelas que brincam sozinhas quase que escondidas e nunca, nunca mesmo, jogam futebol ou basquete ou volley ou qualquer coisa coletiva. Ele é só por definição. No colégio provavelmente é o quieto, o problemático anônimo de quem ninguém se lembra.O brutal meio ambiente de um colégio oprime aquela sua natureza de concha e ele fecha-se, cala-se, olha-se e pensa. O resultado é a timidez, não podia ser outro. Tímido não por medo, mas por renúncia. Não é daqueles tímidos que passam a infância e a adolescência sonhando em ser populares, ele simplesmente não quer nada disso.Quando cresce e algumas coisas começam a fazer sentido, ele pode tentar falar mais com as pessoas, ser de algum grupo de amigos ou até mesmo ser popular, mas acontece que no meio de toda aquela gente ele sabe que está só... e é o único que sabe disso.Mas... por que?
Por que?! Por que estas pessoas vivem com uma constante sensação de deslocamento que não passa por mais que queiram e parece que quanto mais resistem mais evidente se torna o seu completo isolamento. São os malditos da vida, os banidos do mundo, os exilados da realidade... Podem até ficar alegres, enturmados, parecendo “normais” mas eles sabem que são diferentes. O mundo inteiro pode ter sobre eles uma opinião que passa a quilômetros do que eles vêem dentro de si. É por isso que sempre causam espanto a toda gente e mesmo às pessoas mais próximas costumam dizer-lhes coisas do tipo: “eu não sabia que você era assim...”. Eles escutam muito disso. Não importa como tenham sido seu dia e sua noite, cedo ou tarde, quando ele se deita e apaga a luz ele a encontra novamente. Encontra o que? A solidão. Nas noites, nos bares e nas festas pode-se flagra-los por um instante ensimesmados, pensativos, melancólicos.Quando se percebem olhados se endireitam e se lhes perguntam se têm alguma coisa eles sempre negam, dão um sorriso e mudam de assunto. Mas não importa o que pareçam ser para o mundo inteiro... eles sabem... eles sempre sabem... É como se sobre eles tivesse caído uma praga de isolamento existencial. Essa mágoa da solitude, que não os abandona nunca, é algo que a maioria deles não entende. Sabem apenas que ela existe e que vive a incomodá-los, a feri-los.
Todos eles têm na alma um abismo... grande, largo, profundo e que parece não ter fim... Por causa disso têm uma alma grande, larga e profunda o bastante para acomodar esse abismo e por causa desta grandeza desprezam as mesquinharias e os sentimentos pequenos. Aspiram às emoções elevadas porque são elas as únicas que lhes enchem a alma e de algum modo suprimem a falta que eles sentem. Assim, não é difícil entender porque são eles os que possuem os grandes sentimentos e porque são eles os únicos que vivem as grandes paixões! São possuidores-de-mundos porque os mundos que carregam consigo são mais vastos e mais tempestuosos que o real. É incrível como toda essa grandeza ainda não é o bastante! Quando amam, a metáfora da cara-metade jamais pode ser tão bem empregada do que quando se aplica a eles. A vida destas pessoas é um poema vivo, é uma sinfonia em plena execução. Todos eles possuem algo de poético e de sublime em sua existência encravada no meio do mar da normalidade trivial. E todos são incompreendidos. Sempre, sempre incompreendidos como o foi Van Gogh, com certeza um deles. Ninguém vê a poesia personificada nestes espíritos inquietos, às vezes nem mesmo eles. Para os que vêem, experimente perguntar se gostam dela. Não! Trocariam qualquer sublimidade para livrarem-se desta falta que os faz viver a procura... de quê? Ah, se eles soubessem! Todos acham poéticas as vidas de Van Gogh, de Virginia Wolf, de Quental, de Chopin ou de Nietzsche... mas Van Gogh trocaria sua vida pela de Théo, Virginia pela de Vanessa, Quental pela de Castilho,Chopin pela de Litz e Nietzsche, apesar do Ecce Homo, pela de Peter Gast. São as vidas e as coisas belas que ninguém quer ter... a velha história da faca de dois gumes. É por muito se sentirem deslocados que eles viram andarilhos, procurando debaixo de cada pedra de calçamento um poema, em cada acontecimento uma história, dentro de cada pessoa uma música. E é aí que sentem as grandes paixões. Sua imaginação trabalha a 48.900 rotações por minuto. Eles idealizam... mesmo que não queiram, eles idealizam... mais que isso: eles vivem suas idealizações... simplesmente não dá pra evitar.
Estas pessoas são aquelas que carregam alguma coisa de infinito nos olhos, são aquelas que você sente o coração bater mais forte quando as abraça, são as que parecem por a paixão de uma vida inteira num beijo, são as que colocam tal poesia no dia-a-dia, que quando amantes e amadas se contentam com tão pouca coisa fora de sua paixão que se diria que podem viver dela. Se por um lado têm aquela mágoa, por outro são as mais felizes do mundo quando amam pois somente assim respiram a plenos pulmões. Mas o problema é que a única pessoa que soluciona sua mágoa é a da qual ele mesmo é a solução... é uma pessoa igual a ele... é uma possuidora-de-mundos. E estas pessoas, para desgraça de si mesmas, são raras... muito raras...

(AUTOR DESCONHECIDO)